Num desses meus vôos, passei numa livraria no aeroporto de Guarulhos e comprei o livro “Uma Breve História do Mundo” de Geoffrey Blainey. O livro é excelente e praticamente li tudo no vôo de algumas horas. Este livro conta a história da humanidade de uma maneira muito agradável, pois o autor tem uma excelente capacidade de resumir e contar somente os fatos mais interessantes.
Nesses momentos onde nós da comunidade de desenvolvimento de software estamos discutindo sobre auto-organização, Scrum, Agile e outras coisas, a leitura de Blainey vem bem a calhar. Por incrível que pareça, não faz sentido as pessoas acharem que auto-organização é algo extraordinário! Para já adiantar o assunto, auto-organização é algo que a humanidade pratica a milhares de anos e de alguma forma isso se perdeu nos últimos 100 anos.
No período Paleolítico, tempo da história que durou aproximadamente 2 milhões de anos, o homem se desenvolveu vivendo em grupos pequenos de até 20 pessoas. Eram tribos nômades que saíram da África e se deslocavam atrás daquilo que a natureza lhes oferecia (frutas, raízes, pesca, caça e etc…). É fácil imaginar como esses grupos se auto-organizava, apesar de ter uma liderança dos mais experientes (provavelmente nas atividades de caça). Nesse período frio da história a maior responsabilidade de um ser humano era sobreviver, e era uma questão de sobrevivência desenvolver a fala. O fato do ser humano necessitar de formas de comunicação explica um pouco sobre esse modo de vida.
Nesse período havia um grande isolamento. Não houve por exemplo um agrupamento de 50 humanos num mesmo lugar, pois um grupo grande não conseguiria subsistir dos recursos locais por um tempo maior que algumas semanas. Os grupos moravam em cavernas e temiam a noite, assim como grandes animais.
Pinturas ruprestes: uma forma de “modelagem” comunicativa
Ainda na pré-história, lentamente, num período de 10 mil anos conhecido como a “Passagem”, a Terra se aqueceu, muitas geleiras derreteram aumentando o nível dos oceanos e o mapa-mundi ficou da maneira como o conhecemos hoje. A Terra começou a ter mais lugares habitáveis, teve um significativo aumento da população mundial, gradativamente o homem começou a desenvolver a agricultura e passou de nômade a sedentário. Esse período foi chamado Mesolítico caracterizado principalmente pelo domínio do fogo.
Continuando a história, com um homem sedentário e menos dependente dos humores da natureza, surgiram tribos e clãs maiores. O homem construiu casas que formavam as primeiras aldeias, mas mesmo assim havia um profundo senso cooperativo. Havia quem plantava, havia quem caçava e até a criação/domesticação de pequenos animais se desenvolveu. Como o estabelecimento do homem em locais fixos temos o Período Neolítico. Ainda nesse período, não há qualquer razão para acreditarmos em qualquer estrutura rígida de controle: não havia relações de emprego e a formação social era simples e auto-organizada.
Com o domínio da fundição e outros avanços tecnológicos como a irrigação e o uso de ferramentas, já na Idade dos Metais (final da Pré-História), o homem organizou as primeiras cidades-estado e reinos onde havia comércio à base de trocas. Surgiram a navegação e as guerras. Mesmo assim, o dia-a-dia das pessoas era plantar e fazer alguns artesanatos (ferramentas, roupas, cerâmicas) em constante auto-organização geralmente em pequenas estruturas familiares. Nesse período com guerras e conquistas, surgiram talvez dois grupos não “auto-organizados”: os exércitos e os escravos. Exércitos logicamente não são auto-organizados na sua essência, pois não há sentido em ter uma reunião diária para decidir em grupo “quem vai morrer hoje”. Geralmente um general ou capitão toma essa decisão por você.
Só até este ponto, cubrimos grande parte da história humana, e vemos que a dinâmica interna do trabalho produtivo (fora os militares e escravos), em linhas gerais, era o homem obedecendo a natureza sobre os momentos certos de plantar, regar e colher. Não havia “chefes” mandando aquilo que os trabalhadores deveriam fazer no seu “dia-a-dia” (não estou entrando no mérito dos abusos dos Modos de Produção). Esse período que compreende desde o Neolítico (aproximadamente 10.000 a.C) até a Revolução Industrial (entre os séculos XVII e XIX) o trabalho consistia basicamente em plantar, criar animais e obter meios de se proteger do frio sempre em estruturas artesanais familiares. O trabalho de lavrar ainda era responsabilidade dos lavradores e eles dominavam essa arte. Não tinha gerentes de projeto ou algo similar. Não tinha ninguém dizendo como e qual ordem as coisas deveriam acontecer. Se você vier em qualquer sítio familiar aqui em Vinhedo, de onde escrevo (bebendo um vinho de garagem da produção local), você ainda vai encontrar uma estrutura descentralizada e cooperativa que ainda perdura mesmo no século XXI.
Nos primórdios da Revolução Industrial muito mudou na maneira como olhamos para o capital e para o trabalho, e sem comentar as mudanças econômicas e políticas. Resumidamente a Revolução Industrial é sinônimo de automação. Com a crescente automação da agricultura e outros avanços tecnológicos, os rigores do campo se tornaram mais amenos. As pessoas saíram das fazendas e se instalaram nas cidades. Passaram a trabalhar não só plantando, mas viveram também da manufatura nas oficinas artesanais de roupas, utensílios e máquinas – um renascimento urbano – tendência que já vinha se desenvolvendo desde a Idade Média. Mesmo com essas mudanças, guerras e variações no clima que abalam a agricultura ainda podiam fazer centenas de milhares morrerem de fome.
Trabalho infantil ainda era muito presente no séc. XX
As mudanças deste século foram muito aceleradas. Tivemos o impulso de duas Grandes Guerras. Pessoas como Taylor, Fayol e Ford acrescentaram muito ao pensamento industrial e econômico. Chegamos ao Mundo Global e à era da Informação.
Apesar de ter feito isso, o objetivo deste artigo não era só contar história, mas lendo o livro do Blainey, escrever me pareceu irresistível. O objetivo aqui é dizer que realmente não há desculpa plausível para não ter auto-organização entre os profissionais do conhecimento e de alta tecnologia que são os desenvolvedores de software. A auto-organização é algo que faz parte da existência humana nesses milhares de anos de existência. É algo natural para um ser inteligente e racional. A falta de conhecimento, o medo, as limitações na comunicação e as barreiras culturais nunca foram motivos para não existir auto-organização na história. Um homem do Período Paleolítico, vestindo capas de peles, fugindo do frio, temendo grandes animais e sem sequer dominar o fogo sabia se auto-organizar. É simplesmente inconcebível que um programador, lendo este blog num MacBook, esperando um vôo num aeroporto internacional e falando ao seu iPhone, precise de alguém para organizar o seu trabalho juntamente com a sua equipe de desenvolvimento.
Pense nisso, Homo sapiens…
Fala Rodrigo,
Acredito que hoje buscamos o modelo ágil e de auto organização por que já termos um nível de maturidade na nossa sociedade. Porém isso ainda não é uma realidade em todos os cenários.
Achei realmente interessante a sua abordagem histórica que acabei encontrando conteúdo complementar:
“Neste período acreditam os estudiosos que existia algum tipo de hierarquia que distribuía o trabalho”
http://www.idealdicas.com/periodo-paleolitico
Acredito eu que lá no passado a “força” era o critério de escolha dos lideres. Não sou historiador mas fica ai os meus 2 cents!
Parece haver uma espécie de conformismo em algumas equipes de desenvolvimento. Muitos falam que fariam o que quer que seja melhor que seus chefes ou que não precisariam de indivíduos que lhes direcionassem as ações ou ao menos as instigassem, mas tirando a(s) pessoa(s) que possue(m) a visão do todo e essa força agregadora, aqueles que são fatores de desagregação ou receptores passivos de tarefas ficam desorientados, pois não são capazes de se organizar para dividir trabalho e definir prioridades e acabam perdendo a motivação.
Por mais que falem – ou deixem de falar e de se comunicar, como acontece muito com os profissionais técnicos –, a verdade é que a maioria das pessoas prefere a comodidade de receber ordens e tarefas sem se dar ao trabalho sequer de analisar criticamente aquilo que lhes foi ordenado fazer.
@Ramon, auto-organização não exclui as hierarquias, mas pode diminuí-las. Apesar das barreiras hierárquicas estarem “caindo”, mesmo que lentamente, elas ainda vão existir. O Google talvez seja a maior empresa MENOS hierarquizada que existe, mas a hierarquia está lá.
http://blog.aspercom.com.br/2008/04/10/culturaempresarialemalta/
Mesmo em métodos ágeis, auto-organização tem regras e a equipe obedece ao cliente. Auto-organização não é Anarquia. Basicamente no artigo estou falando contra “micromanagement”, que é o estilo de quem não crê em auto-organização.
Martins,
Esse é realmente um fato do mundo real.
Yoshima,
Tanto o Google / Microsoft e muitos outros tem um modelo muito descolado / alternativo de trabalho com praticamente micro empresas dentro da organização que toma suas próprias decisões. A grande questão é que essas companhias tem objetivos claros. Quem não atingir o mesmos estará apitando no BSC.
Eu já tive a oportunidade faz muitos anos de passar por uma grande experiência onde os dois diretores da empresa saíram da mesma da noite para o dia para assumirem outras posições em outra organização. Coube a todo o time tocar os projetos. E fizemos cada um com as suas responsabilidades.
Mas voltando ao “tema” original ainda acredito que a “auto organização” em questão era baseada nos mais fortes.
Texto muito bom sobre auto-gestão:
http://escoladeredes.ning.com/profiles/blogs/a-logica-da-abundancia
Show de bola Rodrigo!
Gostei da forma que você abordou auto-organização.
Com o seu post ficou claro que ela é uma característica que todo ser humano deve ter.
O que acontece de errado na sociedade atual, é que somos criados de uma forma que não incentiva a auto-organização. Cada vez mais as pessoas se tornam submissas e dependentes das ordens dos superiores (pais, professores, chefes, etc).
A auto-organização é fundamental para o crescimento profissional, e precisamos estimular essa característica no nosso ambiente de trabalho. Afinal, não há espaço para o comodismo, quando trabalhamos de uma forma ágil. 🙂
Abraços!
Fabrício Ferrari de Campos
Olá Rodrigo, muito me interessa esse tema. Sou formado em Ed. Física, trabalho com handebol e futebol e tenho estudado o jogo esportivo sob a ótica dos sistemas caóticos, fator que me levou a ler sobre muitas aspectos relacionados à complexidade, teoria dos sistemas e hoje me foco nos estudos sobre auto-organização.
Jogar e uma ação auto-organizavel por ‘natureza’ como você bem descreve em seu título e foi muito interessante abusar mais uma vez da transdisciplinaridade e aprender mais nesse seu ótimo blog.
Att.
Prof. Lucas Leonardo